Sempre acreditei que as
cozinhas rompem fronteiras. Um limite político entre dois países, regiões ou
estados não é o suficiente para impor diferenças culturais entre os povos.Talvez mude o idioma ou
o sotaque, mas os hábitos alimentares, dificilmente. Eles estão entre os traços
culturais mais arraigados que temos e permeiam nosso cotidiano e nossa maneira
de interpretar o meio ambiente em que vivemos.
Viajando pela America
Latina, tive a grata experiência de conhecer a diversidade cultural deste
imenso continente no que tange a gastronomia. Ainda me falta muita estrada pela
frente para dar conta da imensidão de recursos alimentares e maneiras de
preparar e servir os alimentos. Algo que pude perceber é
que muitas vezes, as barreiras naturais e ecossistemas são fatores muito impactantes, se não
determinante naquilo que comemos e consideramos típico da nossa região.
Nascido paranaense,
natural do Sul do Brasil, ao me mudar para a Argentina, aprendi que no país
hermano também se toma chimarrão, se come churrasco e pinhão. A maneira de
servir o mate muda, a erva é mais amarga e granulada, os cortes de carne são
diferentes e o ritual de fazer o fogo também. Mas o valor que damos a
carne vacuna e ao ritual de assá-la nas brasas é algo que nós une, em um
extenso Pampa que abarca grande parte do Sul do Brasil, da Argentina, Uruguai e
Paraguai. Ao conhecer os Andes
férteis, passando pela Bolivia, Peru e Ecuador, provei centenas de ajís, milhos
e batatas dos mais diversos tamanhos, cores, texturas e sabores, e aprendi que
cada um deles tem um uso e finalidade específica na gastronomia. E percebi que
os indígenas Andinos, agricultores por excelência, tem esses ingredientes na
base dos seus caldos e guisos.Isso me faz crer que não existe uma cozinha
exclusiva Argentina, Brasileira ou Peruana, mas uma Cozinha Pampeana, Andina,
Pantaneira, Amazônica, Patagônica entre tantas outras que podemos esmiuçar
dentro de cada um destes amplos ecossistemas sulamericanos. Essas fronteiras
naturais nos aproximam e, em outros casos nos distanciam.
No sul do Brasil, não tenho acesso fácil a
produtos do meu próprio país, como um bom queijo mineiro, um peixe de água doce
da bacia amazônica ou uma manteiga de garrafa do sertão nordestino. Talvez por
imposições rígidas da vigilância sanitária, ou pelas longas distancias que nos
separam, ou até a viabilidade ou interesse econômico em produzir e
comercializar certos insumos em uma escala maior.
Para os cozinheiros, que querem explorar
cozinhas regionais muitas vezes o desafio é grande. Tome-se como exemplo Alex
Atala – dispensa apresentações – que faz expedições na Amazônia em busca de
novas e exóticas raízes, frutas, flores e sementes. Como ele mesmo comentou,
muitas vezes é mais caro o custo de trazer a mercadoria do que o produto em si.
Outra questão que muitos cozinheiros tem se
preocupado é a sustentabilidade dos agricultores e pequenos produtores que
fornecem os insumos para os restaurantes. Seria mais fácil usar alimentos
produzidos em larga escala, mas que muitas vezes são tão processados que
terminam com sabores homogeneizados. O Chef de cozinha Thiago Castanho, natural
de Belém do Pará, foi buscar na Ilha do Combú, em uma área de proteção
ambiental, a matéria prima para a produção das suas sobremesas. O chocolate
usado provém de plantações de cacau da Ilha é a produção é 100% artesanal. O
sabor? Indiscutível. Muito mais gostoso que qualquer barra de chocolate
industrializada. E combinado com cupuaçu em diferentes texturas, Thiago logra
uma sobremesa deliciosa.
Por falar em artenasal, o trabalho de
cozinheiros-artesões também tornam a experiência gastronomica mais valiosa. O
chef Fernando Rivarola não compra suas carnes autóctones no mercado fracionadas
e congeladas. Ele recebe os bichos inteiros e tem a árdua e minuciosa tarefa de
desossá-los, porcioná-los e aproveitar o máximo de cada parte do animal para
desenvolver um prato especifico. Nas suas leituras contemporâneas Fernando
idealiza pratos como carpacio de llama, guiosa de jacaré e escabeche de lebre.
Lhes pergunto, onde poderíamos provar essas
iguarias, apresentadas de maneira tão delicada e saborosa? Seria possível
desfrutar de um jantar unindo chefs tão engajados apresentando em um jantar uma
degustação de pratos que melhor definem suas filosofias de trabalho?
Sim, no El Baqueano Carnes Autóctonas. Esta é a
essência do Projeto Cocina sin Fronteras, idealizado pelo Chef Fernando
Rivarola e a Sommeliere Gabriela Lafuente, proprietários do restaurante.
Participar deste evento, do qual tive o
privilégio de ser convidado para a edição com Thiago Castanho, foi uma
experiência única. Como poderia imaginar que provaria tantos e novos sabores
amazônicos em uma esquina charmosa de San Telmo em Buenos Aires ?
Essa é a proposta louvável deste projeto. Somar
a vocação de cozinheiro pesquisador do Chef Fernando Rivarola com a juventude e
ousadia de Thiago Castanho, que trouxe, na mala de viagem, 5 quilos de Filhote
em um longo voo com várias escalas desde Belém até Buenos Aires.
Dois cozinheiros, duas histórias de vida
diferentes, duas memórias gustativas que se encontram e propõem a preparar –
numa linguagem contemporânea – pratos com ingredientes da cozinha pampeira,
andina, patagônica e amazônica em um único jantar.
O resultado disso tudo foi o memorável menu
degustação com momentos marcantes, como o Jamón de Rio, feito a base de Pacú do
rio Paraná, que passa por um processo de cura semelhante ao dos presuntos
espanhóis; os langostinos da fria Puerto Madryn com uma salsa rosa
desconstruída e a saborosa carne de ñandu perfumada com fumaça de madeira de piquillín, servida
com doces cebolas caramelizadas, obras de Fernando. Já Thiago apresentou as
possibilidades da pupunha, onde não só o palmito proveniente do tronco, mas
também os frutos da palmeira são usados e desconstruídos no prato. O famoso
Filhote, um dos maiores peixes da bacia amazônica, acompanhado de Tucupi –
leite extraído da mandioca brava cujo sabor é tido como “umami” brasileiro – e
jambu, planta amazônica cujo sabor quase alcalino surpreende.
Em um menu de 10 passos, os dois chefs conseguiram
levar os comensais a uma viagem por ingredientes e sabores inéditos,
contrastantes, em pratos marcados pela leveza, equilíbrio e esteticamente
impecáveis.
Essa proposta de dialogar duas cozinhas tão
distantes e distintas gera conhecimento para quem o produz, reforça laços de
amizade entre os cozinheiros, e proporciona o deleite dos comensais.
Que as portas do El Baqueano continuem abertas
para receber cozinheiros de outros lados.
Que “Las ollas abiertas de Latino America” continuem em pleno trabalho,
e as chamas dos fogões não se apaguem nunca.
Wagner Gabardo - Sommelier
Bloguero especializado en vinos y spirits y divulgador innato
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